:: ArtigosCacarejos no Estado-EspetáculoGaudêncio Torquato22/08/2019 14:52:00Os estilos da galinha e da pata
servem para comparar governantes, partidos e, de modo geral, os políticos. A
primeira põe um ovo pequenino, mas cacareja e todo mundo vê, enquanto a segunda
põe um ovo maior e ninguém nota. O ovo da pata, segundo os nutricionistas, é
mais completo que o da galinha, mas é este que gera atenção, intenção, desejo e
ação – a fórmula AIDA – para estimular seu consumo. E o êxito se deve porque a
fêmea do galo sabe alardear seu produto, cumprindo rigorosamente o preceito
maquiavélico: “o vulgo só
julga aquilo que vê.”
Pois bem, Bolsonaro adota o estilo de
galinha. Lula, também. Ambos apreciam cacarejar em palanques, usando expressões
acusatórias, símbolos populares, abordagens que primam pelo mau gosto e, em
alguns casos, entrando no poço do “baixo-calão”. Há dias, indagado sobre se é
possível preservar o meio ambiente, o presidente sugeriu ao repórter “fazer
cocô dia sim, dia não, para reduzir a poluição ambiental”. Noutra feita,
indignado, disse que basta “um cocozinho petrificado de índio para barrar
licenciamento de obras”.
Lula também tinha das suas. No Rio
Grande do Sul, em alusão a um túnel na BR-101, mandou: “Não podemos parar tudo por causa de
uma perereca, como aconteceu com o túnel em Osório. O País não pode ficar a
serviço de uma perereca....Nem que eu tiver que me atarracar com aquela
perereca, vou andar nesse túnel. E peça para a perereca sair de perto, porque
eu vou vir meio nervoso."
Para compreender como o cacarejo
adquiriu importância central na política, é oportuno lembrar as tintas que
desenham nossa identidade. Os estudiosos do ethos
nacional costumam apontar, entre os valores que o plasmam, a falta
de precisão, a adjetivação excessiva, o individualismo, a propensão ao exagero.
Somos um povo de linguagem destemperada e de pensar fluido, indeterminado,
misterioso. Por isso, o Brasil passeia na gangorra, ora como o melhor dos
mundos, ora como o pior.
Prezamos a verborragia. Sob ela, tem
sido fácil aos nossos governantes pôr um aditivo no verbo e exagerar o tamanho
de seus feitos administrativos.
Na era moderna, governantes e
políticos sobem ao palco do Estado-Espetáculo, onde, com muita saliva,
acrescentam palmos de altura ao seu tamanho, elevando as benesses que
praticam. No Estado Novo, o Brasil entrou na moldura do Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) getulista. No ciclo militar, mergulhamos nas águas
do Brasil-Potência. Resgatamos os albores democráticos, a partir de
1986, com o governo Sarney, ouvindo mais uma vez cacarejos que vendiam as
glórias de planos econômicos.
Falácias acabaram frustrando o povo.
Perplexos, assistimos ao marketing exacerbado do furacão Collor, passamos pelas
extravagâncias do estilo Itamar e seu topete, ouvimos as falas elaboradas do schollar Fernando
Henrique, até subirmos ao palanque permanente armado nas ruas durante a era
Lula. Sem esquecer o destampatório confuso da dona Dilma Rousseff. Cada qual
teve seu modelo de entoar “causos”, soltar recursos e amarrar apoios.
Na antiguidade, conta-se sobre
Temístocles, o altivo ateniense, que não era de cacarejar. Convidado para tocar
citara numa festa, o general declinou: “Não
sei tocar música, o que sei é fazer de uma pequena vila uma grande cidade.”
Já os governantes das nossas três
esferas federativas afinam o tom, não hesitando em manejar cítara, clarineta
ou trombone. Abandonam o foco. Veja-se Bolsonaro. Fala pelos cotovelos. Atira
forte nos adversários, alguns com pesados xingamentos. Parece inebriado pelo
poder. Gogol já dizia: “Não
é por culpa do espelho que as pessoas têm uma cara errada.” A ruína
provocada pelo modelo pirotécnico de administrar acaba inspirando a verve
exagerada dos nossos governantes.
Não se questiona a necessidade do
governante de comunicar ao povo as ações de governo. É dever dos mandatários
prestar contas dos atos, o que exige boa comunicação. E não deve haver oposição
à decisão de quem usa o canal legítimo, com mensagem apropriada, no momento
propício e para atingir a públicos adequados. O que é apropriado? Mostrar
propostas e fatos. O que é desapropriado? O uso do palanque todo tempo, com
venda de ilusões e apelos em direção aos aplausos. O Brasil precisa de menos
Estado-Espetáculo e mais Estado-Cidadão.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor
titular da USP, consultor político e de comunicação
Twitter @gaudtorquato
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